"Nzambi a tu bane nguzu um kukaiela"

quinta-feira, 25 de março de 2010

UCPA 49 – 07/2006: “Zenzele Uma carta para minha filha”, de “J. Nozipo Maraire” – Fragmento do cap.v.

Quando chegaram seus papéis da imigração e da matrícula, tomei consciência, afinal, de que você de fato estava indo para o estrangeiro. Durante semanas você me atormentou e a seu pai com perguntas sobre os estudos de pós-graduação que ele fez em Nova York e sobre nossas muitas viagens de trabalho ao exterior.

_ Quanto faz de frio no inverno de lá, mamãe? Baba, é verdade que eles comem lesma? Elisa disse que uma vez esteve na França e que serviram lesmas e pernas de rã no jantar! Vou comer sadza e derere todo dia. Argh! Que cara têm as pessoas, mamãe? Como é que eles tratam os negros americanos, Baba? Os estudantes realmente são talentosos?

Respondemos da melhor maneira possível. Mas Sabíamos que, infelizmente, nada do que disséssemos, nada que você já tivesse lido, visto ou ouvido iria prepará-la para a experiência que teria no mundo ocidental. Europeus eu sei que não serão novidade. Você freqüentou escolas internacionais e em casa temos um fluxo constante de hóspedes estrangeiros, mas agora vai ser diferente. Aqui, você os conhece na terra que é a sua e eles têm que respeitar sua cultura. Desta vez, os papéis se inverterão. Você é que vai ser a estrangeira; você é que terá sotaque engraçado e maneiras estranhas _ será avaliada pelos parâmetros deles. Infelizmente, poucos europeus encaram os africanos como iguais. Eles só nos enxergam através da névoa indistinta dos resquícios colonialistas. Prepare-se para conhecer muitos que continuam vendo na África uma grande massa amorfa: o continente negro, pântano primevo, embaciado e vaporífero, habitado por criaturas neandertalóides e por nativos joviais, mas primitivos, que se ocupam de sórdidas cerimônias ritualísticas, noite adentro, ao ritmo frenético de tambores.

Isso me lembra a história que, pouco antes de você viajar, seu pai lhe contou. Há dias você implorando que ele falasse mais sobre a época em que estudou em Nova York. Afinal, numa tarde de sábado em que você tinha sido particularmente insistente, ele cedeu.

_ Está bem, está bem. Valha-me Deus, um pobre homem não consegue ter paz nem na sua própria casa!

Você apertou os lábios e, com ar triunfante, olhar atento, esperou começar o filme.

_ Nunca vou esquecer aquela época, anos atrás, quando eu era dirigente da União dos Estudantes Africanos, organismo ativo, dedicado e eclético que representava praticamente todos os países, do Lesoto ao Mali. Estávamos no apogeu da Consciência negra e do poderoso Movimento da Negritude de Senghor. Nenhuma das mulheres se atrevia a trançar o cabelo com apliques louros ou a usar lentes de contato azuis, como agora fazem aqui, num esforço para passarem por brancas. Como se a palidez fosse uma espécie de passaporte para a terra prometida da assimilação. Não, certamente não. Na época, preto era bonito. Dashiki e afro eram os emblemas do afrochique. Escutávamos James Brown e Aretha Franklin, líamos Fanon, Nkrumah, Davis, Baldwin, Angelou, e ostentávamos distintivos de negros nas jaquetas jeans desbotadas. Nossos irmãos e irmãs americanos davam aos filhos os nomes de Omaju, Kumati, e se reuniam em jantares improvisados com o que havia em casa. Mantinham a cabeça erguida e falavam de poder negro. Tínhamos unidade, tínhamos visão. Agora, tudo o que lemos ou vemos é sobre integração, assimilação e mobilidade social. Aquela época foi outra coisa.

Seu pai suspirou. A seguir, sentiu-se em seu elemento, inclinou-se devagar para a ouvinte atenta e prosseguiu:

_ Seja como for, todo ano, na primavera, os estudantes africanos promoviam um simpósio sobre a cultura, a política e o desenvolvimento africanos. Era um grande acontecimento, que abrangia todo o campus, com debates, conferências e oficinas envolvendo todos os departamentos, da literatura a ciência política. Daquela vez, no último dia, os estudantes organizaram um jantar. Estávamos eufóricos, porque a freqüência ao evento havia sido boa e os conferencistas, cuidadosamente escolhidos entre os demais alto calibre no mundo acadêmico e no corpo diplomático, tinham sido provocativos e interessantes. Pedíramos á nova diretora do Departamento de Estudos Africanos que fizesse alguns comentários de encerramento. Um gesto puramente político: os estudantes achavam boa idéia manter relações amigáveis com esse departamento. Era uma antropóloga branca, de cabelos grisalhos, uma californiana cuja única experiência cumulativa em matéria de África haviam sido os três meses durante os quais, dez anos antes, já formada, vivera com uma família em Uganda. Não admira que muitos de nós tenhamos questionado a credibilidade daquela nomeação. Depois de nos parabenizar, ela discursou:

“Eu simplesmente adoro a África. É muito bonita e o povo é o mais caloroso do mundo. Gostei muito do evento de vocês. Mas fiquei decepcionada porque não havia tambores durante o simpósio. Durante nossa estada por lá, meu marido e eu simplesmente adorávamos ficar ouvindo os garotos da aldeizazinha tocando à noite. Sem tambores, não consigo achar completa nenhuma exposição ou mesmo discussão sobra a África”.

_ Ela se sentou _ prosseguiu seu pai _, e houve um silêncio embaraçoso. O insulto teria sido mais suave se não estivéssemos cientes de que, ali, o futuro dos estudantes africanos estava sob a direção dela. Provavelmente, haveria uma enxurrada de pesquisas sobre tambores africanos! Naquela noite, esse discurso provocou um debate mais acalorado do que em todos os seminários juntos! Horas mais tarde, 15 africanos em ebulição se comprimiram em meu microscópico apartamento de bacharelando, na enturmada parte alta do West Side de Manhattan. Em poucos minutos, pairava no ar uma névoa fumarenta e ressoava o alarido de vários idiomas estrangeiros. Lembro que Madiw Ndiaye, um senegalês estudante de medicina, negro retinto e reluzente, como sempre impecavelmente vestido, estava particularmente irado. Subiu numa cadeira, aos gritos: “Temos que mandar um requerimento e exigir dela um pedido de demissão imediato!” A sugestão foi acolhida por ruidosos aplausos. Passei a noite em claro: debatemos e argumentamos até o amanhecer. Denunciamos um rosário de práticas neocolonialistas. Alguns cochilavam nas cadeiras, acordando uma hora depois e mergulhando na discussão, mais apaixonados do que nunca. Naquela época, éramos todos revolucionários. Qualquer um de nós poderia ter sido o próximo Nkrumah, o próximo Mandela ou o próximo Luthuli. Coletávamos dinheiro para nossos guerrilheiros na Rodésia, na África do Sul e na África do Sudoeste, como eram então chamadas. Imprimíamos panfletos e marchávamos em torno do campus com cartazes. Certa vez, Tammi Nkosi, da África do Sul, fez greve de fome durante duas semanas para chamar a atenção sobre os prisioneiros do regime de aphartheid mantidos na notória Robben Island. Nós éramos jovens e cheios de energia. Acreditávamos no advento de uma nova África _ concluiu ele.

De repente, em minha cadeira de tricotar, ali no canto, eu me senti muito só. Estava fora da admiração arrebatada que seu olhar projetava sobre seu pai. Ele deu uma risadinha, dobrando os óculos e balançando a cabeça. Depois pegou o Business Herald, ainda rindo e murmurando: “Tambores, tambores, Deus do céu, a mulher queria tambores!” Você se mostrava fascinada, deliciada por haver encontrado em seu pai um camarada.

_ E depois, o que aconteceu, Baba? Vocês fizeram o requerimento?

_ Oh, fizemos, sim. Ela naturalmente, permaneceu no cargo e nós fomos censurados pelo gabinete do decano por não termos qualquer senso de humor.

Devo admitir que, ao ver você meio desapontada, senti um pouquinho de satisfação. Seu pai continuou:

_ Mas, no fim das contas, para nós não importava o que os funcionários administrativos disseram ou fizessem. O incidente causou profundo efeito sobre todos nós. Naquela noite, aprendemos uma lição valiosa. Essa historinha vai além do ativismo estudantil. O tema que ela envolve está no cerne de nosso dilema pós-colonial. Veja bem, Zenzele, os estudantes africanos, assim como muitos de nossos líderes africanos de hoje, sentaram-se juntos e produziram uma pauta das questões que lhes pareciam críticas em relação ao nosso continente. O programa foi estabelecido e executado por africanos. A antropóloga, no entanto, tinha uma visão da África totalmente diferente. Enquanto nós buscávamos jogar luz sobre os problemas, ela queria entreterimento. Primeiro sancionaou a doutrina da vida selvagem, depois a da nobreza bravia. Infelizmente, era ela que detinha o poder de avaliar aptidões, direcionar pesquisas, alocar fundos e publicar livros. Este era exatamente o nosso conflito com os poderosos países no Norte. Para eles, somos o Terceiro Mundo, os países atrasados, o mundo em desenvolvimento, subdotado. A pauta que estabelecem em relação a nós muda a cada nova tendência do pensamento deles, de modo que nossa trajetória nunca é consistente. Num ano temos que gerar uma classe média, no outro eles querem descarregar sobre nós o lixo tecnológico que produzem, no seguinte reconhecem que a tecnologia apropriada é a resposta, e a coisa segue assim...

Eu, por minha vez, estava tricotando um cardigã vermelho para você. Enquanto trabalhava para lhe tecer algo quentinho e protetor, seu pai a expunha à aspereza da vida...

MARAIRE, J. Nozipo. “Zenzele Uma carta para minha filha”. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. Fragmento do cap. v. São Paulo: Mandarim, 1996.

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